Magliani será homenageada pela Fundação Iberê com uma grande exposição que resgata 50 anos de produção

Por Stephany Foscarini

No dia 19 de março (sábado), às 14h, a Fundação Iberê inaugura uma grande e inédita exposição de Maria Lídia Magliani (1946-2012). “Magliani” reunirá cerca de 200 obras provenientes de mais de 60 coleções, incluindo os principais museus do Brasil como Museu de Arte do Rio, Museu Afro Brasil, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu de Arte Moderna de São Paulo, MAC-USP, MAC-RS, Museu de Arte de Santa Catarina, MARGS, Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo (Pelotas) e Fundação Vera Chaves Barcellos (Viamão). Com curadoria de Denise Mattar (SP) e de Gustavo Possamai (RS), a mostra inclui trabalhos desde a época de estudante – início dos anos 1960 – até 2012, ano de seu falecimento.

A obra de Magliani é um desafio. Não é uma arte fácil, é feita para incomodar, para fazer refletir. A artista estava interessada nas questões humanas, nas relações entre os seres, nos problemas e no sofrimento inerente à existência: o desencontro, o desamor, a hipocrisia da sociedade, o medo da solidão”.

“A obra de Magliani é um desafio. Não é uma arte fácil, é feita para incomodar, para fazer refletir. A artista estava interessada nas questões humanas, nas relações entre os seres, nos problemas e no sofrimento inerente à existência: o desencontro, o desamor, a hipocrisia da sociedade, o medo da solidão. A apresentação de seu trabalho na Fundação Iberê, torna inevitável o paralelo com pintor. Em 1993, Iberê disse: ‘Eu não nasci para brincar com a figura, fazer berloques, enfeitar o mundo. Eu pinto porque a vida dói’. Uma frase que poderia ser de Magliani, que, em 1997, escreveu: ‘Eu gostaria de dizer às pessoas que veem os meus quadros: ‘Sinto muito senhores, não é agradável’”, destaca Denise, que conheceu Maria Lídia Magliani em 1987. Ela era diretora técnica do Museu de Arte Moderna de São Paulo, e a artista participou do Panorama da Arte Brasileira. Anos mais tarde, em 2004, a curadora reencontrou Magliani no Rio de Janeiro, onde fez a apresentação da exposição Trabalho Manual.

Magliani foi uma artista rara e merece todo reconhecimento. Por isso, garimpamos e reunimos o máximo de obras possível, sem medir esforços”.

Como lembra Gustavo Possamai, responsável pelo acervo da Fundação Iberê: “Magliani foi uma artista rara e merece todo reconhecimento. Por isso, garimpamos e reunimos o máximo de obras possível, sem medir esforços. Promovemos a restauração de muitas delas, reunimos escritos e depoimentos seus e de quem escreveu sobre seu trabalho, revisamos e ampliamos sua cronologia. É nossa forma de contribuição para a redescoberta de seu trabalho.” Possamai conta que, durante o processo de pesquisa, foi encontrada uma carta de Iberê para Magliani, datada de 1992, na qual o pintor escreveu: “Nós dois temos a mesma meta, o mesmo ideal, a mesma devoção. Haveremos de deixar nossos rastros neste chão em que nascemos.” Um depoimento precioso que reitera a oportunidade dessa exposição.

“…pinto a solidão no meio da cidade… a solidão do consumo”

Nascida em 25 de janeiro de 1946, na cidade de Pelotas, Magliani veio morar em Porto Alegre, com 4 anos de idade. As informações sobre a família são esparsas. Seu avô era italiano, decorador de paredes; o pai era servidor público e a mãe fazia serviços domésticos. Apesar das dificuldades financeiras enfrentadas pela família, desde a adolescência gostava de ler, de ouvir música, de ir ao cinema, ao teatro, de desenhar e de pintar.

Magliani formou-se em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da UFRGS, mas se autodenominava pintora: “artista plástico faz muita coisa; eu só pinto, desenho, gravo, tudo derivado da pintura”. Apesar da afirmação, ainda na década de 1960, trabalhou em teatro, ilustrando capas de programas, fazendo cenografia e atuando em peças, como “A Celestina” (1970), de Fernando Rojas; “As Criadas” (1969), de Jean Genet, e “O negrinho do pastoreio” (1970), de Delmar Mancuso, nesta última como protagonista. Em 1969, em parceria com Francisco Aron, criou o “Espaço de Arte”, no corredor do Teatro Aldeia II, onde expôs pinturas. Também se interessava por moda, e apreciava customizar, costurar e tricotar o que vestia.

Outra área de atuação foram os jornais, onde trabalhou, nos anos 1970, como diagramadora e ilustradora, ofício retomado em algumas mudanças de cidade posteriormente. Os jornais foram Folha da Manhã, Diário de Notícias, Zero Hora e Folha de São Paulo, entre outras participações e ilustrações.

Magliani deixou de residir em Porto Alegre em 1980, morou em São Paulo, em Tiradentes, Minas Gerais e no Rio de Janeiro, mas nunca se desligou nem de Porto Alegre e nem de sua terra natal, Pelotas, realizando regularmente exposições nessas cidades.

Sua produção é intensa e vigorosa e a exposição apresenta um panorama bastante consistente de seu trabalho. A mostra é complementada por uma publicação dividida em dois volumes: o primeiro deles concebido como um catálogo de obras, e o segundo reunindo entrevistas e textos de Magliani, algumas de suas cartas, textos sobre ela de autores como: Teniza Spinelli, Celso Marques, Carlos Scarinci, Angélica de Moraes, Maria Amélia Bulhões, entre outros.

Reunindo um volume significativo de obras, a exposição apresenta trabalhos de todo o percurso de Magliani, organizados de forma cronológica e mostrando as alterações que sua obra foi sofrendo ao longo dos anos. Para compartilhar com o público a instigante personalidade da artista e sua multiplicidade, o trajeto da mostra é complementado com algumas frases e fotos da artista em vários momentos de sua vida.

Na sequência são apresentadas pinturas do início de sua carreira, de 1964 a 1967, caracterizadas por um clima melancólico e lírico, com a inserção das frases poéticas riscadas sobre a tinta: A espera do canto (c.1965/1966), O mesmo corpo com som de primavera (1966), Autorretrato na nuvem (1966), Eu tenho a flor (1967) e Eu sou a inútil pureza nascida de dois silêncios (1967) são algumas delas.

Em 1968 há uma mudança significativa na obra da artista, na qual ela se descreve como uma “delatora do desencontro”. É uma fase de passagem, influenciada pela pop art com trabalhos, como Segundo canto para o amigo triste e As portas fechadas da cidade.

Era um período difícil da ditadura militar e a convivência com a censura nas redações influencia a obra de Magliani. Seu repertório torna-se mais drástico, e, em 1976, ela faz a exposição Anotações para uma história, no MARGS. Foi um choque! A sociedade gaúcha não estava preparada para o que viu, e rejeitou com veemência o trabalho. No ano seguinte, levou ainda mais longe sua proposta realizando a série Elas, com grotescas mulheres seminuas, imensamente gordas, que ela considerava uma espécie de retrato interior da humanidade, e dizia: “Minha intenção é fazer a figura sair da tela, se derramar por cima da gente, sufocando”. A série, muito bem representada na retrospectiva, chamou a atenção dos críticos Jacob Klintowitz e Marc Berkowitz e foi determinante para a mudança da artista para São Paulo. Antes de ir embora, realizou na Galeria Independência, em Porto Alegre, a exposição Brinquedo de armar, reunindo desenhos e pinturas, sobre as quais dizia: “Acho que a mulher é o brinquedo mais armado e desarmado constantemente. Mas considero que todo mundo é, ou pode ser, um brinquedo de armar.”

O período de 1980 a 1988, o mais marcante da carreira da artista, coincide com o tempo em que ela residiu em São Paulo. Lá produziria as séries Retratos falados, Crônica do amanhecer e Discussões com Deus. Abandonando os tons sépia, passa a usar cores vibrantes e ácidas; mescla lápis de cor, de cera, pastel, grafite e até materiais de maquiagem, como corretivo e delineador, e muda o tratamento da pintura, usando a tinta acrílica e adotando pinceladas ágeis e gestuais, como traços de desenho, num processo que imprime movimento ao trabalho. É um momento no qual a obra de Magliani conversa de perto com a de Francis Bacon, atingindo o ápice de contundência e visceralidade da pintora. Retorcidos e distorcidos, corpos e rostos se desfazem e refazem, em movimentos bruscos.

Seus trabalhos são apresentados no Panorama do Museu de Arte Moderna de São Paulo, na Bienal de São Paulo, e, em 1987, Evelyn Ioschpe promove no MARGS uma mostra de caráter retrospectivo: Auto-retrato dentro da jaula. Dez anos depois da rejeição que sofrera, Magliani foi acolhida pelo público de sua cidade como uma estrela, a mais importante artista gaúcha de sua geração. O público poderá ver novamente todas essas séries, hoje integrando coleções de museus como Pinacoteca do Estado de São Paulo, MAM-SP e MAC-USP.

Em 1989, ela já estava cansada da violência e da poluição e queria fazer pinturas em um lugar mais tranquilo. Escolheu a pequena e histórica Tiradentes (MG). Lá, suas pinturas revelaram a solidão das montanhas, retomando os tons terrosos, nas séries em Gerais, Madrugada insone e Acumulações. A artista também desenvolve, nesse período, uma série de cabeças, que são esculturas em madeira e papel machê.

Em 1997, mais uma mudança, agora para o Rio de Janeiro, mais especificamente o bairro de Santa Tereza. Passou a frequentar o Estudio Dezenove, onde conheceu Julio Castro, que viria a se tornar colega, amigo, e, finalmente, o principal guardião de sua obra, após seu falecimento.

Em 1999, Magliani retornou a Porto Alegre, onde ministrou algumas aulas e oficinas de pintura e papel machê. A passagem pela capital gaúcha durou um ano. No ano 2000 voou para o Rio de Janeiro. Com tantas mudanças a produção de Magliani diminui, mas há séries marcantes nesse período: em Gerais, Madrugada insone, Acumulações e Alfabeto, trabalho que deriva para as figuras recortadas das séries Retratos de Ninguém e Todos. A partir de 2009 é intensa sua produção de gravuras, impressas no Estudio Dezenove por Julio Castro. Um dos sonhos, Fábula, Da noite e O poeta são algumas delas. Curiosamente, ao lado desse mergulho no universo monocromático, denso e expressionista da gravura, Magliani desenvolve a série mais colorida e lúdica de toda a sua carreira. São pinturas realizadas em estridentes cores acrílicas, recortes em madeira e objetos. Uma parte desse conjunto, sob o título My baby just cares for me, foi apresentada em exposição individual da artista, no Museu Imaginário, em Bruxelas, Bélgica.

Todos esses momentos, apresentados em conjunto, revelam com clareza a excelência da obra de Maria Lídia Magliani, que começa a ser redescoberta também internacionalmente.

Magliani humanista

Apesar de pessoalmente engajada na luta pelos direitos humanos, Magliani não admitia que sua obra fosse interpretada como política ou identitária. Era intransigente nessa questão. São muitas as declarações dela a esse respeito. “Meu interesse é pelo que as pessoas sentem, não pelo que elas pensam […] Tenho preocupação com a vida, com a humanidade em geral. Nada a ver com raça específica, religião, nada. Uma coisa que é comum a todo mundo. A essência humana é igual para todos. O que interessa é isso. Todos os outros acréscimos: nacionalidade, cor, ideologia, credo, preferência sexual, time de futebol, tudo isso é acessório.”

Dentro dessa atitude de defesa da autonomia da sua obra, acima de qualquer circunstância, está também a rejeição a todo tipo de abordagem referenciando seu trabalho à negritude. “Por que sempre me perguntam como é ser negra e ser artista? Ora, é igual ao ser de qualquer outra cor. As tintas custam o mesmo preço, os moldureiros fazem os mesmos descontos e os pincéis acabam rápido do mesmo jeito para todo mundo.” A posição de Magliani sempre foi candente nessa questão, e ela afirmava, desassombradamente, que era contrária a guetos. Na publicação da UFRGS, Nós, os afro-gaúchos, de 1997, fez a seguinte declaração, quase um manifesto: “Sou brasileira, nascida no Rio Grande do Sul. Isto é o bastante. Não quero escolher uma raça em função da cor da minha pele. Não quero ser fatiada, dividida em porções, me aceito como soma.”

Uma lutadora, sem medo de desafios, que, entre divertida e séria, dizia: “Minha mãe falava: ‘Não se pode dar um passo maior que as pernas.’ Então vou ficar sentada, não vale a pena caminhar? Qual é a graça? Dar um passo maior que as pernas sempre. Romper expectativas, e os estereótipos principalmente.”

Maria Lídia Magliani faleceu na noite de 21 de dezembro de 2012, no Rio de Janeiro, vítima de uma parada cardíaca.

Foto: Divulgação | Fonte: Assessoria
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